Momento Bruno Alves da semana

Parece um argumento de Stephen King mas não. É de Ricardo Rego e vem no Açoriano Oriental de hoje, dia das bruxas - para alguns. Um intervalo entre as SCUTS e a crise:

“Ele desaparafusou a base da sanita e arrumou um telemóvel”

Reportagem do AO registou o relato de um ex-recluso que mostra como a população (alguma) do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada continua incapaz de seguir as regras


Quando chegou à prisão, I., chamemos-lhe assim, entregou tudo o que tinha consigo, após ter sido detido em flagrante delito: chaves, carteira e telemóvel. Em troca, foi-lhe transmitido, oralmente, o código de conduta no interior do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada. Um conjunto de regras que alguns reclusos seguem à risca e que outros, os mais destemidos ou manifestamente menos interessados em cumprir a pena com distinção, teimam em transgredir.

Concluído o cerimonial de apresentação e de “boas-vindas”, é tempo de percorrer um dos três corredores (o equivalente a três pisos), cada um deles com 4 celas e uma casa de banho ao dispor das necessidades básicas dos reclusos. I. partilhou uma cela com 12 homens (há quem partilhe com 15), entre eles, açorianos, continentais, ucranianos, que cumpriam castigo por diferentes crimes: violência doméstica, tráfico de droga e acumulação de multas de estacionamento. “Os homicidas vão para o piso inferior onde, pelo que percebi, não há tantas regalias”, afirma I. Mas há quem procure acrescentar à TV de 37 cm no interior de cada cela, com acesso aos canais nacionais de sinal aberto, às horas de recreio, ao serviço de bar, de enfermagem, de lavandaria e aos cursos de formação profissional e de licença para condução (Carta de Condução), disponíveis no estabelecimento prisional, outras mordomias não previstas.

Mesmo sabendo que, a qualquer momento, pode haver rusga no interior das celas porque os guardas suspeitam de irregularidades ou porque “alguém se abriu”, como se diz por lá. “Quem é o bufo? Onde está o bufo?” Poucos dias após o início do cumprimento da pena decretada pelo Tribunal, I. começou a ganhar a confiança dos companheiros de cela. Quebrava-se o gelo inicial. O primeiro voto que recebera foi de um colega que disse ter uma telemóvel escondido por baixo da sanita da casa de banho. “Ele desaparafusou a base da sanita e arrumou lá um telemóvel que usava com alguma frequência para comunicar com a família”, admite I.. Como conseguiu levar para lá o telefone? “Não sei. Só sei que preferia nem ter sabido que aquele telemóvel estava lá”.

A tensão dos reclusos no interior da cadeia é, na maior parte dos casos, provocada. Isto é, não resulta, apenas, do facto de estarem confinados às paredes da cela ou, na melhor das hipóteses, às paredes do edifício. O assunto “bufo” é o que ocupa a maior parte do tempo e da conversa entre os presos da mesma ala. Por saberem que não estão a cumprir com as regras estabelecidas, impõe-se localizar e identificar aqueles que podem dar com a língua nos dentes. Mesmo que não exista um bufo, alguém encarrega-se de o arranjar.

Na cadeia de Ponta Delgada compra-se tudo. Até serviço de segurança. Os mais vulneráveis e mais frágeis podem pedir “vigilância” permanente aos mais fortes. Basta, primeiro, cair em graça e, uma vez celebrado uma espécie de contrato entre as duas partes, cumprir com a remuneração: sobremesas, cigarros, café, droga, acumulação das tarefas de faxina do corredor e casa de banho da respectiva ala. Enfim, tudo serve para que, no momento do recreio, o mais crítico, porque é lá que os reclusos se cruzam mais tempo, o elo mais fraco não sofra uma carga de porrada. “Com protecção, ninguém toca nele porque o segurança sai logo em defesa”, diz I., que percebeu logo a necessidade “de saber falar com eles” para sobreviver.

Se uma conversa não é bem entendida, está declarada guerra”. “Queres mais? Vai lá fora?” Os reclusos da cadeia de Ponta Delgada têm direito a ter na carteira 20 euros por semana. “Se forem apanhados com 20 euros e um cêntimo, tiram-lhes logo o dinheiro e naquela semana ficam sem saldo”. O depósito dos familiares serve, na maior parte dos casos, para comprar droga. Há das mais leves às mais pesadas: haxixe, canábis, cocaína e heroína. Uma dose de haxixe no interior do estabelecimento, explica I., “é o equivalente a uma cabeça de fósforo pequeno”. Custa dois euros e meio. “É muito pouca quantidade mas quando reclamamos mandam-nos ir lá fora comprar”. I. continua sem saber como é que ela lá entra. Não atingiu o nível de confiança necessário para o saber.

As soluções para responder à dependência vão aparecendo. “Há quem compre 20 euros de haxixe e depois, como fica sem dinheiro, pede cigarros à família e vai recebendo um café, por exemplo, a troco de uma sobremesa ou da faxina da cela”. As mortalhas (papel para enrolar o cigarro feito de haxixe) já lá estão, à venda no bar.

Os que não se deixam ficar pelas drogas leves vêem na medicação distribuída antes das refeições uma forte e simpática aliada. Antes do pequeno-almoço, do almoço ou do jantar a corrida à enfermaria denuncia, aos mais distraídos, a disponibilidade dos reclusos em tratar a dependência da droga. Nada mais errado. “A maior parte deles simula a toma dos medicamentos e depois voltam à cela para guardar o comprimido, já meio desfeito, nos plásticos de carteiras de cigarros”. Estes comprimidos serão a matéria-prima para as seringas que lá circulam sem que haja autorização oficial para tal. No caso dos que não se querem injectar, os comprimidos são vendidos.

Aqui, como na maior parte das transacções que são feitas entre reclusos das diferentes celas, assume protagonismo o faxina de serviço. Nos períodos em que os guardas vão almoçar ou jantar, o responsável, naquele dia, pelas limpezas transforma-se num autêntico moço de recados. De cela em cela, lá vai fazendo o negócio do material que lhe entregam pela pequena janela da porta da cela. I. acredita que os guardas conhecem este submundo do universo prisional. Mas se prejudicam o negócio, “são um alvo a abater por gente que gosta de estar lá dentro. Porque têm tudo”.

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