A herança de Cavaco por Daniel Oliveira
“Não espanta que, apesar do nosso défice estar na média europeia, a direita concentre todo o debate político na questão das finanças públicas. As razões seriam ideológicas se a nossa direita fosse liberal. Mas não é. A escolha desta agenda deve-se mais ao embaraço.
O nosso problema é, como dirá qualquer pessoa que olha de fora para a frieza dos números, económico. E ele resulta de uma estratégia com vinte anos. Se é verdade que Portugal vinha de um enorme atraso, resultado do seu isolamento económico, do atavismo das suas elites e do subdesenvolvimento cultural do país, não podemos ignorar que tivemos, no final dos anos 80 e nos anos 90, uma oportunidade histórica. A entrada na CEE significou uma injecção extraordinária de fundos comunitários – a que os países de leste não tiveram acesso. Não devemos ser anjinhos: a estratégia dos grandes da Europa nunca foi criar na periferia pólos de concorrência. Mas tivemos a oportunidade de fazer grandes escolhas.
Nestes vinte anos as prioridades de investimento foram quase exclusivamente para as grandes obras públicas. O que significou a aposta no trabalho intensivo e desqualificado que marcaria o tipo de desenvolvimento e de empresas que hoje temos. E, já agora, o tipo de empresários que marcam o ritmo da nossa economia e da nossa política.
Fora isso, floresceram os serviços indiferenciados e as empresas financeiras, à luz da promessa de que o crescimento induzido continuaria. Os principais grupos económicos reconstituíram-se com a ajuda de privatizações e, como no passado, de monopólios naturais. Não tiveram de criar realmente nada. O ordenamento do território foi feito a imagem e semelhança da aposta na rodovia e no carro individual e o pequeno comércio foi dizimado como em mais nenhum país europeu.
Durante estes vinte anos negligenciou-se a indústria de bens transaccionáveis e a inovação. O investimento em investigação e desenvolvimento continuou a ser feito quase exclusivamente pelo Estado. O que é normal, já que o tipo de empresas que floresceram durante o período das vacas gordas não precisavam desta nova mão de obra, com muito mais formação do que a das gerações anteriores.
O investimento na formação foi desastroso. Rios de dinheiro foram perdidos no poço sem fundo de cursos a fingir. Ao mesmo tempo, desinvestia-se nas universidades públicas.
Foi neste estado, sem um tecido produtivo digno desse nome, sem capacidade de inovar e acrescentar valor ao que produzíamos, com empresas endividas – bem mais do que o Estado – e sem qualquer preparação para a concorrência que aí vinha, que Portugal entrou no euro. Tal nem mereceu grande debate. Porque a Europa não se discute no nosso país. Habituámo-nos a olhar para ela como uma vaca leiteira. Não estávamos, temos hoje de o dizer, preparados para uma moeda forte que, não tendo nós qualquer argumento competitivo que não fossem os salários baixos, afectaria a nossa possibilidade de exportar.
Feito este retrato, vale a pena então perceber onde isto começou. Quando foram feitas estas escolhas? Não é um exercício difícil: no cavaquismo. As coisas não ficam por aí. Com Guterres, Durão e Sócrates seguiu-se o mesmo caminho. Mas a matriz é a de Cavaco Silva.
Acabo então onde comecei. É natural que a direita portuguesa queira limitar o debate às finanças públicas. Porque se discutir a economia terá de concluir que as nossas principais fragilidades resultam das escolhas feitas no tempo em que de forma mais duradoura e segura esteve no poder. O PS limitou-se a seguir o trilho então definido. Pagamos agora o preço dessa oportunidade perdida.”
Publicado no Expresso Online e retirado daqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário